28.5.08
27.5.08
TROPEÇOS
Quando você se dispõe ao amor você está se jogando em um precipício. E amar é cair. Cada vez mais fundo. Você confunde e pensa que está voando. E voa mesmo. Em direção ao fim. Do buraco. Tem gente que se joga em grandes precipicios. Outros só pulam em buraquinhos. Outros ainda passam a vida inteira se jogando em vários. Ou pulam eternamente no mesmo. Tem gente que anda em linha reta. Passa por ponteS. Olha para baixo mas não sai da linha. Tem gente que fica parada. Nem se move. Outros saltam muito mais alto. Uns caem de cabeça. Uns de ponta, hahahaha. Salto bombinha. Saltitantes. Quicam. Rolam.
Eu escalo. Tu escalas. Ele escala. Nós...
Eu escalo. Tu escalas. Ele escala. Nós...
20.5.08
AÇÃO E REAÇÃO
Amantes da loucura. Nos olhos só. Corriam riam e iam. Os postes da rua. São tantos. Interligados, levam energia aos lares fechados. Olhando mais adiante dava para observar o movimento simétrico das pernas. E se os fito. Renegam-me. Renegando-me me regenero. Quando o sol bate na cara não se pode analisar o mundo. Se só. Somos pó. Se pó. É melhor não ser como se é. Uma cachoeira no quintal de casa. A música é sempre abstrata. No concreto do concreto tem muito cimento para carregar. No início cansa. Mas depois acostuma. A vida fica mais fácil. Mas têm prédios que não desabam. Meio ilusão isso. Aposto que não lhes restam nem escadas. Aparência. Estética. Estética? A estética do saber do sabido que soube que era sustenido e ficou triste no seu canto e não percebeu que poderia ser feliz ao lado daquele videogame. Coitado. Descanse em paz. Agora as cortinas sempre estarão fechadas. Mas lembre-se que ainda tem vida por aqui. É fachada. Assim ninguém me vê. Assim. Mais vale na vida ser mendigo. Esperar o tempo. Os prazeres da vida são tão caros. Morrerei com todos eles. Espero-lhe. Maldita culpa que nos fazem carregar. O amor é a grande perda de tudo o mais. Só os fracos o permitem. Vou correr. Entrar em forma. Antes que seja tarde. Que tal uma cerveja? Dá barriga. Daí não adiantaria o exercicío. Rezai-vos todos os dias e não temereis. Nem todo barco é verde. Compreendeu? Não? Então cala a tua boca. E outros orifícios mais...
17.5.08
Ontem
Esfreguei os olhos remelosos. Eram 7 horas da manhã. Não queria ver a luz. Mas não tive escolha. Acho que já devem estar desconfiados de mim. Ninguém pode representar a vida toda. Talvez sim. Faço por engolir essas observações. Que fique claro, então. Assim convenço, parcialmente. Basta-me. O fato é que hoje eu não queria acordar. Prolonguei o pensamento e não consegui nem sequer tomar meu café diário matinal. Arranquei os dentes da ponta do cigarro. Até o fumo me consumia. Nada. Eu não queria nada. E me sobrou à responsabilidade, a rotina e a dor. Confesso que ando exausta de ser triste. Não que tenha gosto pela felicidade. Tenho outros objetivos. Só que o problema era mais profundo. Descia nas veias, percorria os ossos e ficava impregnado na pele como um parasita incontrolável que me tirara o entusiasmo. O entusiasmo não tem nada haver com meu caráter. Embora você pense assim. Momento crítico. O pânico me domina. Tento recapitular os acontecimentos não achar razões. Não dá. O cérebro já está por demais fatigado. Estou gripada e não paro de assuar o nariz. Nunca tinha pensado em tal coisa. O que deve ser bom ou mal para mim. Tomo o que me aparece no caminho e faço disso o melhor uso. Não cultivo tais pessoas deliberadamente. Confesso que elas me atraem. Mas eu também sou por elas atraído. Sei de uma coisa. Não podemos contar com as pessoas. Triste. Estou triste. O olhar concentrado não trás respostas. Ponho-me a trabalhar. Até posso dar gargalhadas. Voluntárias. Espero o dia.
16.5.08
RECEITAS ANTITÉDIO por Hilda Hilst
(segunda-feira, 22 de fevereiro de 1993).
Pequenas sugestões e receitas do espanto antitedio para senhores e donas de casa durante o carnaval.
I.
Pegue um nabo. Coloque duas ou três palavras dentro dele, por exemplo: bastão, ouro, amplidão. Chacoalhe. Você não vai ouvir ruído algum. É normal. Ai ajoelhe-se com o nabo na mão e diga:
“Com o bastão que me foi dado
Com o ouro que me foi tirado
E sem nenhuma amplidão
De conceitos e dados
Quero nascer brasileiro
E poeta.”
Quem te ouvir vai ficar besta.
II.
Coalha um pé de couve e dois repolhos. Embrulhe-os. Faça as malas e atravesse a fronteira. Ta na hora.
III.
Pergunte ao seu filhinho se ele quer laranja descascada de tampinha ou de gomo. Se ele disser que quer laranja descascada de tampinha, diga que um menino bem educado sempre escolhe a de gomo. Se ele começar a chorar, chupe você a laranja. De tampinha, naturalmente.
IV.
Enfeite a mesa com flores. Compre um peru. Feche as crianças no banheiro. Antes de começar a ceia, convide seu marido para dançar ao redor da mesa (não mexa com o Peru). Inopinadamente pergunte se ele gosta de trufas. Se ele disser que sim, gargalhe algum tempo atrás da porta e diga que “trufas não tem não, amorzinho”.
V.
Compre manteiga. Passe-a nos dedos (esqueça Marlon Brando). Chupe-os. E diga em tom de oração: Que vida solitária, meu Deus! (Contenha-se).
VI.
Compre uma língua de tucano (é uma umbelífera), uma língua de vaca (Chaptalia nutans é seu nome cientifico), um lírio branco (Lilium candidum), dois caquis (não é cáqui, não vá comprar o brim da cor dos caquis), ferva durante cinco minutos. Depois jogue fora, olhando para o alto. É uma simpatia para você não dormir.
VII.
Corte um saco em pequenos pedaços. Um de estopa, evidente. Embrulhe vários ovos, um por um, em cada pequeno pedaço de estopa. Pinte caras descarnadas, dentes pontudos e beiços vermelhos na cara dos ovos (sempre esses de galinha ou de pato, é desses que eu estou falando). Quando alguma das tuas crianças começar a pedir aquelas coisas caríssimas e imbecis que são sugeridas na televisão, cubra-se de negro a noite, use tintas fosforescentes para ressaltar a cara dos ovos (aqueles) e quebre-os um a um nas pequeninas cabeças dizendo com voz rouca: parem de pedir coisas impossíveis a sua mãe, seus canalhas!
VIII.
(Se você for PhD, leia até o fim. Se não, pule esta).
Faca um buque de orelhas. É fácil. Peça apenas uma a cada um de seus dez amigos íntimos. Diga-lhes que é para uma causa nobre. Se perguntarem qual causa (não confundir com Cáucaso, é outra coisa), diga que você precisa mandar o buque para tua velha e querida preceptora inglesa (quando você tinha quinze anos, lembra-se?), que arrancou as tuas duas porque você insistiu inquebrantável durante doze horas seguidas que aquela primeira frase de Marco Antonio para o povão era, na “tua” tradução, “Emprestai-me vossas orelhas”. Todos concordarão, acredite, com o teu pedido. Ainda mais porque todo mundo sabe que “Lend me your ears” quer dizer isso mesmo.
IX.
Se você quer se matar porque o país está podre, e você quase, pegue uma pedrinha de canfora e uma lata de caviar e coloque ao lado seu revólver. Em seguida, coloque a pedrinha de cânfora debaixo da língua e olhe fixamente para a lata de caviar. Só então engatilhe o revólver. (É bom partir com olorosas e elegantes lembranças. Atenção: não de um tiro na boca porque a pedrinha de canfora se estilhaça).
Pequenas sugestões e receitas do espanto antitedio para senhores e donas de casa durante o carnaval.
I.
Pegue um nabo. Coloque duas ou três palavras dentro dele, por exemplo: bastão, ouro, amplidão. Chacoalhe. Você não vai ouvir ruído algum. É normal. Ai ajoelhe-se com o nabo na mão e diga:
“Com o bastão que me foi dado
Com o ouro que me foi tirado
E sem nenhuma amplidão
De conceitos e dados
Quero nascer brasileiro
E poeta.”
Quem te ouvir vai ficar besta.
II.
Coalha um pé de couve e dois repolhos. Embrulhe-os. Faça as malas e atravesse a fronteira. Ta na hora.
III.
Pergunte ao seu filhinho se ele quer laranja descascada de tampinha ou de gomo. Se ele disser que quer laranja descascada de tampinha, diga que um menino bem educado sempre escolhe a de gomo. Se ele começar a chorar, chupe você a laranja. De tampinha, naturalmente.
IV.
Enfeite a mesa com flores. Compre um peru. Feche as crianças no banheiro. Antes de começar a ceia, convide seu marido para dançar ao redor da mesa (não mexa com o Peru). Inopinadamente pergunte se ele gosta de trufas. Se ele disser que sim, gargalhe algum tempo atrás da porta e diga que “trufas não tem não, amorzinho”.
V.
Compre manteiga. Passe-a nos dedos (esqueça Marlon Brando). Chupe-os. E diga em tom de oração: Que vida solitária, meu Deus! (Contenha-se).
VI.
Compre uma língua de tucano (é uma umbelífera), uma língua de vaca (Chaptalia nutans é seu nome cientifico), um lírio branco (Lilium candidum), dois caquis (não é cáqui, não vá comprar o brim da cor dos caquis), ferva durante cinco minutos. Depois jogue fora, olhando para o alto. É uma simpatia para você não dormir.
VII.
Corte um saco em pequenos pedaços. Um de estopa, evidente. Embrulhe vários ovos, um por um, em cada pequeno pedaço de estopa. Pinte caras descarnadas, dentes pontudos e beiços vermelhos na cara dos ovos (sempre esses de galinha ou de pato, é desses que eu estou falando). Quando alguma das tuas crianças começar a pedir aquelas coisas caríssimas e imbecis que são sugeridas na televisão, cubra-se de negro a noite, use tintas fosforescentes para ressaltar a cara dos ovos (aqueles) e quebre-os um a um nas pequeninas cabeças dizendo com voz rouca: parem de pedir coisas impossíveis a sua mãe, seus canalhas!
VIII.
(Se você for PhD, leia até o fim. Se não, pule esta).
Faca um buque de orelhas. É fácil. Peça apenas uma a cada um de seus dez amigos íntimos. Diga-lhes que é para uma causa nobre. Se perguntarem qual causa (não confundir com Cáucaso, é outra coisa), diga que você precisa mandar o buque para tua velha e querida preceptora inglesa (quando você tinha quinze anos, lembra-se?), que arrancou as tuas duas porque você insistiu inquebrantável durante doze horas seguidas que aquela primeira frase de Marco Antonio para o povão era, na “tua” tradução, “Emprestai-me vossas orelhas”. Todos concordarão, acredite, com o teu pedido. Ainda mais porque todo mundo sabe que “Lend me your ears” quer dizer isso mesmo.
IX.
Se você quer se matar porque o país está podre, e você quase, pegue uma pedrinha de canfora e uma lata de caviar e coloque ao lado seu revólver. Em seguida, coloque a pedrinha de cânfora debaixo da língua e olhe fixamente para a lata de caviar. Só então engatilhe o revólver. (É bom partir com olorosas e elegantes lembranças. Atenção: não de um tiro na boca porque a pedrinha de canfora se estilhaça).
9.5.08
Mais Hilda...
Trecho de
Axelrod (da proporção)
de Hilda Hilst
(Sugestão: leia este texto ouvindo um som mântrico qualquer, um que lhe coloque em transe.)
Unir-se, Axelrod, unir-se a alguém, é disso que precisas. A quem? À História? Como se ela fosse alguém essa falada História, penugenta andando por aí, como se ela fosse real, olha aí a História, tá passando aí, olha pra ela, olha a História te engolindo, jantas hoje com a História, os filhinhos da História, Marat marx mao, o primeiro homicida, o segundo tantas coisas humanista sociólogo economista agitador, ó tão fundo esse segundo, tão História tão Estado. E que terceiro, ó gente, que terceiro.
já leu Marx?
maçante aquilo tudo
mas leu?
sim, o que pude conseguir, as cartas aos amigos dizem mais dele do que tudo
que límpido ordenado, que precisões hen? liberdade pra quê? liberdade têm os outros de te montar em cima, de te arrancarem o naco de carne da boca, tens medo de que te tirem o quê se não tens nada?
Marx meu amor, te amei tão História, Mao e Shu vocês também, que soerguido vital, que caminhadas que floração, que linguagem, e fui relendo, anotando, cintilantes esquemas, destrinchações, como se eu fosse jantar com a História logo mais, como se eu fosse meter com a História, as pernocas abertas da História, as coxonas cozidas de tão faladas, o vaginão da História, vermelhusco, baboso, e o meu fiapo magro nadando lá por dentro
já leu tudo, menino? já sabe tudo de mim, como me fiz, o que sou?
sim dona História
viu que gente de primeira já andou por aí?
sim dona História
e que sangueira hen filho? Que linguagens, que porte, que pompas
Vou entrando na História, endurecendo, vou morrendo explodindo em faíscas, a cavernosa vai me comendo, ímã gozoso, já não sou Axelrod Silva, sou nomes, fachadas, sou máscara, já não penso, pensam por mim, sou credo, sou catecismo, sou bandeira, sou acorde, sou principalmente Político, o peito teso empinado, tenho idéias mas já não sou Axelrod Silva, tudo o que quiserdes, menos eu, a História me chupa inteiro, a língua porejando sangue
goza filhinho
sim dona História, vou indo, estou cheio de idéias, tenho dúvidas, tenho gozos rápidos e agudos, vou te apalpando agora, o povo me olha, o povo quer muito de mim, gosto do povo, devo ser o povo, devo ser um único e harmônico povo-ovo, devo morrer pelo povo, adentrado nele, devo rugir e ser um só com o povo, Axelrod-povo, Axelrod-coesão, virulência, Axelrod-filho do povo, HISTÓRIA/POVO, janto com meus pais, sopa de proletariado, pãezinhos mencheviques, engulo o monopólio, emocionado bebo a revolução, lento vou digerindo o intelecto, mas estou faminto, estarei sempre faminto, cago capitalismo, o lucro, a bolsa de títulos, e ainda estou faminto, ô meu deus, eu me quero a mim, ossudo seco, eu.
doutor, o trem tá parando, vai parar aqui um pouco.
chegamos?
imagine doutor, ainda falta, o senhor está suando muito, quer um refresco? posso ajudá-lo?
vai para aqui?
uma boiada, e ao mesmo tempo uns enguiços na máquina, uma hora talvez, não mais
devo descer então?
esticar as pernas doutor, é melhor, o senhor está suando muito, uma mancha vermelha aí
onde?
na sua testa, dormiu de mau jeito, não foi? a testa encostou nesse duro da madeira, não foi?
Vermelhosuras da História, devo descer mas ela não me larga, grudou-se, chutar a cabeça da História, chutar a bola-cabeça em direção à trave, também joguei sim senhores, joguei, ia chutando a cabeça de muitos naquela única bola, esfacelei uns branquicentos moles, a mim mesmo chutei, chutei minha comensurabilidade, meu limite, meu finito fibroso, minha putrescível cabeça, minha vermelha dura fixa cabeça, ah um ocre que vi e não me esqueço, num canto a parede rebrilhava num branco exibido obsceno e no canto aquele ocre, esqueceram-se, eu perguntei, esqueceram-se de pintar aquilo ali? Aquilo onde? cruzes, cara, aquele ocre ali, olhavam-me, não viam ocre algum, ah mas que ocre, senhores, que ocre, como a fundura de um peixe, escamas ocres lá no fundo, como certos chamalotes, um vermelho-ocre tafetoso, uns estilhados de ruído, aquele ocre ali, que fogaço mínimo, mas que luz a luz daquele ocre. Devo suportar o que me vem, vem vindo, minha cabeça de laca, de sangue esmaltado, efêmero tu mínimo, Axelrod, habitante de um planeta mínimo, bola planeta de uma risível estrela desta Via, lactente pequenino se pensando inchado em abastança, ridículo pequenino abasbacado, laca diluída nas tuas veias, coágulos, então Axelrod te moves quando pensas? ou circulas no teu ridículo espaço com a pompa dos pavões, o peito purgando adjetivos, togado, promotor, te acuso Axelrod Silva de se supor a si mesmo um pretenso diferenciado
de fornicar a História com teu magro minguado. Te acuso de indecências, de pensamenteios, de friorentas idéias, nunca te moverás, maquinista do Nada.
podemos descer juntos, o senhor quer? há uma colina mais adiante e abetos
como?
não nada, sim, pode ser bom caminhar até a colina.
foi isso que pensei, andar um pouco enquanto o trem, olhe, acenderam as luzes, podemos ver o trem de longe iluminado.
Esguio, de passadas lentas, a nuca magra, o olhar é de um cinzento alagado, tenso de ombro e omoplata, discorre pausado de topografias, que à nossa frente, esta, se parece a outras que já viu mas não se lembra onde, que viu tão pouco de tudo e que por isso deveria lembrar-se desse pouco onde, olhe ali, há queimadas, se não vou me cansar até o pequeno topo, não não, imagine eu digo, também nem tanto, quarenta e dois anos ainda suportam um passeio na tarde, e há esse frescor, esse caimento, o cheiro dos abetos. Como? O cheiro desses verdes, ah sim, parecem estranhos, o mundo também, a forma das coisas, é um gavião lá no alto? Sim, pode ser, e me diz que nào quis dizer que eu lhe parecia velho, que nem pensou nisso quando perguntou se eu não cansaria até o pequeno topo, digo que não me importo com esses luxos da idade, que aos vinte temos muitas certezas e depois só dúvidas.
certeza de nada eu tenho
exceção. Aos vinte pontifiquei, tinha um orgulho danado, um visual pretensamente sábio
como?
discorria claro sobre as coisas, pensava que via
o senhor é professor?
sim, História
Apressado me interrompe, entre eu e ele um espêsso, porque me interrompe? entre eu e ele uns afastados, parece desejar chegar ao topo, sim porque deve ser bonito ver o trem lá embaixo iluminado, da História diz que não sabe nada, da sua própria estória sim, começa a correr como se me esquecesse, bem assim também não, correr na subida já maltrata coronárias coração, escuto-lhe a risada quinze passos acima, vejo-o de frente, longo, um nítido de sol numa das faces, não, não devo subir mais, o espesso desmanchando-se, está vivo à minha frente como se fosse o primeiro vivo visto, digo que o moço está tão vivo e tão adequado àquele espaço, tão singularmente colocado que
vamos, venha, ou desço para te ajudar?
Desço para te ajudar, íntimo, caloroso, estendeu os braços, amplo, lento pensando o passo vou subindo, o visível pensado me diz que há um medo se construindo em suor e vazios, o visível pensado não nomeia este medo, não deveria subir mas vou subindo, amasso com meus pés os tufos verdes, fixo-me nos sapatos, moles, úmidos, as meias molhadas, um ridículo Gólgota, sorrio, falta um, não deveriam ser três? Ele e os dois, e faltam cruzes, os dois viram-no subir lá do alto das cruzes? E faz falta a multidão, os lamentos, e a hora da subida não foi esta, subiu a que hora Jeshua? ao meio-dia? A hora, seis e meia a minha, ridiculez de subida, a camisa empapada, tenho cheiros? cheiro como um homem, aprumo-me, sou um home, tropeço, estou de bruços, de bruços pronto para ser usado, saqueado, ajustado à minha latinidade, esta sim, real, esta de bruços, as incontáveis infinitas cósmicas fornicações em toda a minha brasilidade, eu de bruços vilipendiado, mil duros no meu acósmico buraco, entregando tudo, meus ricos fundos de dentro, minha alma, ah muito conforme seo Silva, muitíssimo adequado tu de bruços, e no aparente arrotando grosso, chutando a bola, cantando, te chamam de bundeiro os ricos lá de fora seo Silva brasileiro, seo Macho Silva, hôhô hôhô enquanto fornicas bundeiramente as tuas mulheres cantando chutando a bola, que pepinão seo Silva na tua rodela, tuas pobres junturas se rompendo, entregando teu ferro, teu sangue, tua cabeça, amoitado, às apalpadelas, meio cego cedendo, cedendo sempre, ah Grande Saqueado, grande pobre macho saqueado, de bruços, de joelhos, há quanto tempo cedendo e disfarçando, vítima verde amarela, amado macho inteiro de bruços flexionado, de quatro, multiplicado de vazios, de ais, de multi-irracionais, boca de miséria, me exteriorizo grudado à minha História, ela me engolindo, eu engolido por todas as quimeras.
machucou-se
nem um pouco
Trêmulo me levantando, eu Axelrod me levantando porque o Grande Saqueado deixo ali de bruços, descola-te de mim, eu sozinho sou mínimo, alavancas do sonho, as impossíveis para te levantar, idéias palavras abstrações textos dialéticas, impossíveis alavancas de sonhos impossíveis, beijo-te as nádegas, brasilíssima fundura, teus gordos aparentes, beijo lívido tua escura saqueada rodela, te pranteio
me dá tua mão Axel
A mão do moço, pesada, curta, seca, não está em emoção, a palma toca a minha, molhada, a voz num tom de sacristia, baixa respeitosa, me dá tua mão, Axel, (comeu-me o sufixo, não importa) talvez me veja um pouco abade, abacial, tenho ares de, apesar da magreza, abade Axelrod, ali vai Axel o abade, amanhã ventrudo, tropeçou, vê só, me dá a tua mão, Axel, que tons, como se os turíbulos tivessem passado há um segundo, como se eu lhe tivesse dado escapulários, obrigado abade Axel, posso lhe beijar a mão? Vou me levantando inteiro abade, curvado vou me fazendo, tento chamar a velhice, fazer ares de, quero ser velhíssimo neste instante, e agachado correndo, num urro senil estaco. E numa cambalhota despenco aqui de cima, nos ares,
morrendo, deste lado do abismo.
(...)
Axelrod (da proporção)
de Hilda Hilst
(Sugestão: leia este texto ouvindo um som mântrico qualquer, um que lhe coloque em transe.)
Unir-se, Axelrod, unir-se a alguém, é disso que precisas. A quem? À História? Como se ela fosse alguém essa falada História, penugenta andando por aí, como se ela fosse real, olha aí a História, tá passando aí, olha pra ela, olha a História te engolindo, jantas hoje com a História, os filhinhos da História, Marat marx mao, o primeiro homicida, o segundo tantas coisas humanista sociólogo economista agitador, ó tão fundo esse segundo, tão História tão Estado. E que terceiro, ó gente, que terceiro.
já leu Marx?
maçante aquilo tudo
mas leu?
sim, o que pude conseguir, as cartas aos amigos dizem mais dele do que tudo
que límpido ordenado, que precisões hen? liberdade pra quê? liberdade têm os outros de te montar em cima, de te arrancarem o naco de carne da boca, tens medo de que te tirem o quê se não tens nada?
Marx meu amor, te amei tão História, Mao e Shu vocês também, que soerguido vital, que caminhadas que floração, que linguagem, e fui relendo, anotando, cintilantes esquemas, destrinchações, como se eu fosse jantar com a História logo mais, como se eu fosse meter com a História, as pernocas abertas da História, as coxonas cozidas de tão faladas, o vaginão da História, vermelhusco, baboso, e o meu fiapo magro nadando lá por dentro
já leu tudo, menino? já sabe tudo de mim, como me fiz, o que sou?
sim dona História
viu que gente de primeira já andou por aí?
sim dona História
e que sangueira hen filho? Que linguagens, que porte, que pompas
Vou entrando na História, endurecendo, vou morrendo explodindo em faíscas, a cavernosa vai me comendo, ímã gozoso, já não sou Axelrod Silva, sou nomes, fachadas, sou máscara, já não penso, pensam por mim, sou credo, sou catecismo, sou bandeira, sou acorde, sou principalmente Político, o peito teso empinado, tenho idéias mas já não sou Axelrod Silva, tudo o que quiserdes, menos eu, a História me chupa inteiro, a língua porejando sangue
goza filhinho
sim dona História, vou indo, estou cheio de idéias, tenho dúvidas, tenho gozos rápidos e agudos, vou te apalpando agora, o povo me olha, o povo quer muito de mim, gosto do povo, devo ser o povo, devo ser um único e harmônico povo-ovo, devo morrer pelo povo, adentrado nele, devo rugir e ser um só com o povo, Axelrod-povo, Axelrod-coesão, virulência, Axelrod-filho do povo, HISTÓRIA/POVO, janto com meus pais, sopa de proletariado, pãezinhos mencheviques, engulo o monopólio, emocionado bebo a revolução, lento vou digerindo o intelecto, mas estou faminto, estarei sempre faminto, cago capitalismo, o lucro, a bolsa de títulos, e ainda estou faminto, ô meu deus, eu me quero a mim, ossudo seco, eu.
doutor, o trem tá parando, vai parar aqui um pouco.
chegamos?
imagine doutor, ainda falta, o senhor está suando muito, quer um refresco? posso ajudá-lo?
vai para aqui?
uma boiada, e ao mesmo tempo uns enguiços na máquina, uma hora talvez, não mais
devo descer então?
esticar as pernas doutor, é melhor, o senhor está suando muito, uma mancha vermelha aí
onde?
na sua testa, dormiu de mau jeito, não foi? a testa encostou nesse duro da madeira, não foi?
Vermelhosuras da História, devo descer mas ela não me larga, grudou-se, chutar a cabeça da História, chutar a bola-cabeça em direção à trave, também joguei sim senhores, joguei, ia chutando a cabeça de muitos naquela única bola, esfacelei uns branquicentos moles, a mim mesmo chutei, chutei minha comensurabilidade, meu limite, meu finito fibroso, minha putrescível cabeça, minha vermelha dura fixa cabeça, ah um ocre que vi e não me esqueço, num canto a parede rebrilhava num branco exibido obsceno e no canto aquele ocre, esqueceram-se, eu perguntei, esqueceram-se de pintar aquilo ali? Aquilo onde? cruzes, cara, aquele ocre ali, olhavam-me, não viam ocre algum, ah mas que ocre, senhores, que ocre, como a fundura de um peixe, escamas ocres lá no fundo, como certos chamalotes, um vermelho-ocre tafetoso, uns estilhados de ruído, aquele ocre ali, que fogaço mínimo, mas que luz a luz daquele ocre. Devo suportar o que me vem, vem vindo, minha cabeça de laca, de sangue esmaltado, efêmero tu mínimo, Axelrod, habitante de um planeta mínimo, bola planeta de uma risível estrela desta Via, lactente pequenino se pensando inchado em abastança, ridículo pequenino abasbacado, laca diluída nas tuas veias, coágulos, então Axelrod te moves quando pensas? ou circulas no teu ridículo espaço com a pompa dos pavões, o peito purgando adjetivos, togado, promotor, te acuso Axelrod Silva de se supor a si mesmo um pretenso diferenciado
de fornicar a História com teu magro minguado. Te acuso de indecências, de pensamenteios, de friorentas idéias, nunca te moverás, maquinista do Nada.
podemos descer juntos, o senhor quer? há uma colina mais adiante e abetos
como?
não nada, sim, pode ser bom caminhar até a colina.
foi isso que pensei, andar um pouco enquanto o trem, olhe, acenderam as luzes, podemos ver o trem de longe iluminado.
Esguio, de passadas lentas, a nuca magra, o olhar é de um cinzento alagado, tenso de ombro e omoplata, discorre pausado de topografias, que à nossa frente, esta, se parece a outras que já viu mas não se lembra onde, que viu tão pouco de tudo e que por isso deveria lembrar-se desse pouco onde, olhe ali, há queimadas, se não vou me cansar até o pequeno topo, não não, imagine eu digo, também nem tanto, quarenta e dois anos ainda suportam um passeio na tarde, e há esse frescor, esse caimento, o cheiro dos abetos. Como? O cheiro desses verdes, ah sim, parecem estranhos, o mundo também, a forma das coisas, é um gavião lá no alto? Sim, pode ser, e me diz que nào quis dizer que eu lhe parecia velho, que nem pensou nisso quando perguntou se eu não cansaria até o pequeno topo, digo que não me importo com esses luxos da idade, que aos vinte temos muitas certezas e depois só dúvidas.
certeza de nada eu tenho
exceção. Aos vinte pontifiquei, tinha um orgulho danado, um visual pretensamente sábio
como?
discorria claro sobre as coisas, pensava que via
o senhor é professor?
sim, História
Apressado me interrompe, entre eu e ele um espêsso, porque me interrompe? entre eu e ele uns afastados, parece desejar chegar ao topo, sim porque deve ser bonito ver o trem lá embaixo iluminado, da História diz que não sabe nada, da sua própria estória sim, começa a correr como se me esquecesse, bem assim também não, correr na subida já maltrata coronárias coração, escuto-lhe a risada quinze passos acima, vejo-o de frente, longo, um nítido de sol numa das faces, não, não devo subir mais, o espesso desmanchando-se, está vivo à minha frente como se fosse o primeiro vivo visto, digo que o moço está tão vivo e tão adequado àquele espaço, tão singularmente colocado que
vamos, venha, ou desço para te ajudar?
Desço para te ajudar, íntimo, caloroso, estendeu os braços, amplo, lento pensando o passo vou subindo, o visível pensado me diz que há um medo se construindo em suor e vazios, o visível pensado não nomeia este medo, não deveria subir mas vou subindo, amasso com meus pés os tufos verdes, fixo-me nos sapatos, moles, úmidos, as meias molhadas, um ridículo Gólgota, sorrio, falta um, não deveriam ser três? Ele e os dois, e faltam cruzes, os dois viram-no subir lá do alto das cruzes? E faz falta a multidão, os lamentos, e a hora da subida não foi esta, subiu a que hora Jeshua? ao meio-dia? A hora, seis e meia a minha, ridiculez de subida, a camisa empapada, tenho cheiros? cheiro como um homem, aprumo-me, sou um home, tropeço, estou de bruços, de bruços pronto para ser usado, saqueado, ajustado à minha latinidade, esta sim, real, esta de bruços, as incontáveis infinitas cósmicas fornicações em toda a minha brasilidade, eu de bruços vilipendiado, mil duros no meu acósmico buraco, entregando tudo, meus ricos fundos de dentro, minha alma, ah muito conforme seo Silva, muitíssimo adequado tu de bruços, e no aparente arrotando grosso, chutando a bola, cantando, te chamam de bundeiro os ricos lá de fora seo Silva brasileiro, seo Macho Silva, hôhô hôhô enquanto fornicas bundeiramente as tuas mulheres cantando chutando a bola, que pepinão seo Silva na tua rodela, tuas pobres junturas se rompendo, entregando teu ferro, teu sangue, tua cabeça, amoitado, às apalpadelas, meio cego cedendo, cedendo sempre, ah Grande Saqueado, grande pobre macho saqueado, de bruços, de joelhos, há quanto tempo cedendo e disfarçando, vítima verde amarela, amado macho inteiro de bruços flexionado, de quatro, multiplicado de vazios, de ais, de multi-irracionais, boca de miséria, me exteriorizo grudado à minha História, ela me engolindo, eu engolido por todas as quimeras.
machucou-se
nem um pouco
Trêmulo me levantando, eu Axelrod me levantando porque o Grande Saqueado deixo ali de bruços, descola-te de mim, eu sozinho sou mínimo, alavancas do sonho, as impossíveis para te levantar, idéias palavras abstrações textos dialéticas, impossíveis alavancas de sonhos impossíveis, beijo-te as nádegas, brasilíssima fundura, teus gordos aparentes, beijo lívido tua escura saqueada rodela, te pranteio
me dá tua mão Axel
A mão do moço, pesada, curta, seca, não está em emoção, a palma toca a minha, molhada, a voz num tom de sacristia, baixa respeitosa, me dá tua mão, Axel, (comeu-me o sufixo, não importa) talvez me veja um pouco abade, abacial, tenho ares de, apesar da magreza, abade Axelrod, ali vai Axel o abade, amanhã ventrudo, tropeçou, vê só, me dá a tua mão, Axel, que tons, como se os turíbulos tivessem passado há um segundo, como se eu lhe tivesse dado escapulários, obrigado abade Axel, posso lhe beijar a mão? Vou me levantando inteiro abade, curvado vou me fazendo, tento chamar a velhice, fazer ares de, quero ser velhíssimo neste instante, e agachado correndo, num urro senil estaco. E numa cambalhota despenco aqui de cima, nos ares,
morrendo, deste lado do abismo.
(...)
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