29.5.09

Embriagada

Somos ainda muito pequenos. Tememos a própria morte tanto quanto tememos a morte do outro. Nada mais do que o sangue. Ninguém vê com clareza os fatos que me ocorrem. Eu os vejo. Vejo essa areia morta pelo deserto e me faz perceber o que é imortal em mim.
Eu não dormi bem esta noite. Não ando bem de saúde. A minha dor é o ódio de um pesadelo que não se contentou em me matar. Quer comer cru cada pedaço de meu corpo. Como se minha vida estivesse exposta numa vitrine de açougue. Meu corpo mutilado ainda tem forças. É a energia vital da “mãe-coisa” que se abre em mim constantemente. Sim, sou mãe. Sou mulher.
Eu entro no carro. A porta se fecha. Sinto uma súbita angústia, fadiga, que me percorre os caminhos do dia.
Agora, ainda cansada recolho os destroços da guerra. Ainda encontro tentativas de assombro pela estrada. Eu ando de joelhos sobre o chão. Rastejo a ignorância da humanidade. Poucas vezes me senti frágil. Estou frágil.
Isso é mérito aos ouvidos do assassino de memórias. Por quê você não sabe sonhar, quer carregar os meus sonhos (...). Sinto muito, vai levar consigo as minhas derrotas. É por isso que carregas uma dor maior que a minha. A dor do ódio eu não sinto. E assim cheguei ao trabalho. Meus olhos doem, minha cabeça. Se existe um Deus nesse mundo que rege e guarda-nos o que Ele espera de mim?
Na hora do almoço, eu me sinto melhor. Acho que é o desabafo da vida que me resgata ao mundo. Em momento nenhum me senti distante da minha verdade. Eu sei de tudo e não me preocupam suas acusações. Me molesta sim ter dormido, uma noite sequer ao seu lado. Me enraivece tê-lo amado um dia. Amor banal. Preciso dar mais valor aos meus sentimentos. O bastante para viver.
Quanto ao presente embrulhado em cetim que me foi dado. Desse presente não esquecerei. Tampouco quero-o pra mim. Creio que não me fará bem. As minhas meias estão cerzidas até a cocha. Isso me incomoda meu amor. Você pode tocar as minhas pernas, mas não busca soluções. Embora não tenha sido essa a foto do desespero. Foi nela que mergulhamos juntos. O pássaro que me chamou no meio da noite, perdido na sala de visitas do meu coração, era você pequeno. Não voe para muito longe. Seja sensato e busque o mesmo paraíso que um dia me pertencerá. Segure meus cabelos. Ou continue sua jornada para um bosque mais bonito. Encontrarás rosas perfumadas. Perfume que embriaga os adeuses. Eu preciso de valores, que a mim não foram dados. Rezo pela discórdia que criei entre meus "eus". Abstraio-me e respiro.
A noite chega e com ela seu alento. Eu aguardo anciosa pela pouca atenção que me pertence. Permaneço só ao me deitar. Essa solidão cruel me embala a escuridão. Me refugio no aconchego de minha filha (vida). Tenho medo, mas não temo nada. "Eis a vida, virem-se com ela".
Um belo dia, gostaria de te dar minha mão e sair por ai.

27.5.09

A complicada arte de ver

Rubem Alves

Ela entrou, deitou-se no divã e disse: "Acho que estou ficando louca". Eu fiquei em silêncio aguardando que ela me revelasse os sinais da sua loucura. "Um dos meus prazeres é cozinhar. Vou para a cozinha, corto as cebolas, os tomates, os pimentões - é uma alegria! Entretanto, faz uns dias, eu fui para a cozinha para fazer aquilo que já fizera centenas de vezes: cortar cebolas. Ato banal sem surpresas. Mas, cortada a cebola, eu olhei para ela e tive um susto. Percebi que nunca havia visto uma cebola. Aqueles anéis perfeitamente ajustados, a luz se refletindo neles: tive a impressão de estar vendo a rosácea de um vitral de catedral gótica. De repente, a cebola, de objeto a ser comido, se transformou em obra de arte para ser vista! E o pior é que o mesmo aconteceu quando cortei os tomates, os pimentões... Agora, tudo o que vejo me causa espanto."

Ela se calou, esperando o meu diagnóstico. Eu me levantei, fui à estante de livros e de lá retirei as "Odes Elementales", de Pablo Neruda. Procurei a "Ode à Cebola" e lhe disse: "Essa perturbação ocular que a acometeu é comum entre os poetas. Veja o que Neruda disse de uma cebola igual àquela que lhe causou assombro: 'Rosa de água com escamas de cristal'. Não, você não está louca. Você ganhou olhos de poeta... Os poetas ensinam a ver".

Ver é muito complicado. Isso é estranho porque os olhos, de todos os órgãos dos sentidos, são os de mais fácil compreensão científica. A sua física é idêntica à física óptica de uma máquina fotográfica: o objeto do lado de fora aparece refletido do lado de dentro. Mas existe algo na visão que não pertence à física.

William Blake sabia disso e afirmou: "A árvore que o sábio vê não é a mesma árvore que o tolo vê". Sei disso por experiência própria. Quando vejo os ipês floridos, sinto-me como Moisés diante da sarça ardente: ali está uma epifania do sagrado. Mas uma mulher que vivia perto da minha casa decretou a morte de um ipê que florescia à frente de sua casa porque ele sujava o chão, dava muito trabalho para a sua vassoura. Seus olhos não viam a beleza. Só viam o lixo.

Adélia Prado disse: "Deus de vez em quando me tira a poesia. Olho para uma pedra e vejo uma pedra". Drummond viu uma pedra e não viu uma pedra. A pedra que ele viu virou poema.

Há muitas pessoas de visão perfeita que nada vêem. "Não é bastante não ser cego para ver as árvores e as flores. Não basta abrir a janela para ver os campos e os rios", escreveu Alberto Caeiro, heterônimo de Fernando Pessoa. O ato de ver não é coisa natural. Precisa ser aprendido. Nietzsche sabia disso e afirmou que a primeira tarefa da educação é ensinar a ver. O zen-budismo concorda, e toda a sua espiritualidade é uma busca da experiência chamada "satori", a abertura do "terceiro olho". Não sei se Cummings se inspirava no zen-budismo, mas o fato é que escreveu: "Agora os ouvidos dos meus ouvidos acordaram e agora os olhos dos meus olhos se abriram".
Há um poema no Novo Testamento que relata a caminhada de dois discípulos na companhia de Jesus ressuscitado. Mas eles não o reconheciam. Reconheceram-no subitamente: ao partir do pão, "seus olhos se abriram". Vinicius de Moraes adota o mesmo mote em "Operário em Construção": "De forma que, certo dia, à mesa ao cortar o pão, o operário foi tomado de uma súbita emoção, ao constatar assombrado que tudo naquela mesa - garrafa, prato, facão - era ele quem fazia. Ele, um humilde operário, um operário em construção".

A diferença se encontra no lugar onde os olhos são guardados. Se os olhos estão na caixa de ferramentas, eles são apenas ferramentas que usamos por sua função prática. Com eles vemos objetos, sinais luminosos, nomes de ruas - e ajustamos a nossa ação. O ver se subordina ao fazer. Isso é necessário. Mas é muito pobre. Os olhos não gozam... Mas, quando os olhos estão na caixa dos brinquedos, eles se transformam em órgãos de prazer: brincam com o que vêem, olham pelo prazer de olhar, querem fazer amor com o mundo.

Os olhos que moram na caixa de ferramentas são os olhos dos adultos. Os olhos que moram na caixa dos brinquedos, das crianças. Para ter olhos brincalhões, é preciso ter as crianças por nossas mestras. Alberto Caeiro disse haver aprendido a arte de ver com um menininho, Jesus Cristo fugido do céu, tornado outra vez criança, eternamente: "A mim, ensinou-me tudo. Ensinou-me a olhar para as coisas. Aponta-me todas as coisas que há nas flores. Mostra-me como as pedras são engraçadas quando a gente as têm na mão e olha devagar para elas".

Por isso - porque eu acho que a primeira função da educação é ensinar a ver - eu gostaria de sugerir que se criasse um novo tipo de professor, um professor que nada teria a ensinar, mas que se dedicaria a apontar os assombros que crescem nos desvãos da banalidade cotidiana. Como o Jesus menino do poema de Caeiro. Sua missão seria partejar "olhos vagabundos"...

O texto acima foi extraído da seção "Sinapse", jornal "Folha de S.Paulo", versão on line, publicado em 26/10/2004.

16.5.09

Muito bom!

O marido, ao chegar em casa no final da noite, diz à mulher que já estava deitada:
- Querida, eu quero amá-la.
A mulher, que estava dormindo, com a voz embolada, responde:
- A mala... ah não sei onde está não! Use a mochila que está no maleiro do quarto de visitas.
- Não é isso querida, hoje vou amar-te.
- Por mim, você pode ir até Júpiter, até Saturno e até à p.q.p, desde que me deixe dormir em p
desde que me deixe dormir em paz porra!

5.5.09

Azur

Induzida pela solidão individual
dou risada do mundo
que dá risada de mim
Se eu fosse água (...)
Não fosse só a água
que corre dentro de mim
Imaginasse o todo
completo e robusto
do meu ser
não seria
Esta pata choca
Sem identidade própria
Sem uma razão
óbvia
de ser assim.