12.12.07


E chego agora ao fundo desta tirada aparentemente gratuíta. Pensando como penso, sentindo o que sinto sobre a guerra, eu recusar-me-ia, no entanto, a destruir os livros que tratam do fabrico de material de guerra ou de máquinas de guerra, ou da confecção de gases tóxicos ou da criação de bactérias mortíferas, ou de qualquer outra das invenções diabólicas dos espíritos militares: não destruiria os livros que se ocupam de estratégia ou das regras e convenções que regem a arte da guerra "civilizada". Pelo contrário, gostaria de ver intensificada a distribuição e circulação de toda essa literatura. Desejaria ver informadas sobre estas questões tanto as crianças como os adultos. Faria com que todos os homens, mulheres e crianças de toda a terra se familiarizassem com essas palavras, e as conhecessem tão bem como se pretende que conheçam a Bíblia Sagrada. Iria mais longe ainda. Colocaria a Bíblia numa estante, e, noutra, toda essa literatura homicida. Diria: se olham para uma, têem que olhar também para a outra. Faria uma distinção clara entre o livro onde se ordena que não matemos e todos os outros livros onde a matança dos homens, a matança maciça, é ensinada, explicada, aprovada e exemplificada. Lançaria família contra família, irmão contra irmão, em torno desta questão simples. Recomendar-lhes-ia: ajam de acordo com a vossa consciência. Em breve se decidirá a sorte do mundo: continuará a existir ou deixará de existir. Se são pelo mundo da guerra, alistem-se imediatamente para a guerra! Não nos confundam com a vossa indecisão. Não falem de moral se o vosso objectivo final é colaborar na destruição do nosso mundo.

Entre a Bíblia e os manuais do matadouro, situa-se o mundo da literatura, criado pela paixão, pela sede e pela imaginação do homem, e ocupando-se do pensamento, das acções, dos sonhos e das aspirações do homem. É um mundo extraído da vida, interessado apenas na vida, e que alimenta a vida. Se nele há morte, é só na medida em que lhe falta chama, profundidade, liberdade e capacidade de escolher. Se esse imenso produto da energia criadora fosse uma celebração da morte, não passaria de uma caricatura.

(...)Monstro, robot, escravo, ser maldito - pouco importa o termo utilizado para transmitir a imagem da nossa condição desumanizada. Nunca a condição da humanidade no seu conjunto foi tão ignóbil como hoje. Estamos todos ligados uns aos outros por uma ignominiosa relação de senhor e servo; todos presos no mesmo círculo vicioso entre julgar e ser julgado; todos empenhados em destruir-nos mutuamente quando não conseguimos impor a nossa vontade. Em vez de sentirmos respeito, tolerância, bondade e consideração, para já não falar em amor, uns pelos outros, olhamo-nos com medo, suspeita, ódio, inveja, rivalidade e malevolência. O nosso mundo assenta na falsidade. Seja qual for a direcção em que nos aventuremos, a esfera da actividade humana em que nos embrenhemos, não encontramos senão enganos, fraudes, dissimulações e hipocrisia. (...)É minha convicção que estamos hoje a atravessar um período a que se poderia chamar de "insensibilidade cósmica", um período em que Deus parece, mais do que nunca, ausente do mundo, e o homem se vê condenado a enfrentar o destino que para si próprio criou. Num momento como este, a questão de saber se um homem é ou não culpado de usar de uma linguagem obscena em livros impressos parece perfeitamente inconsequente. É quase como se eu, ao atravessar um prado, descobrisse uma erva coberta de esterco e, curvando-me para a ervilha obscura, lhe dissesse em tom de admoestação: "Que vergonha!".


(Henry Miller- "A obscenidade na literatura", in O MUNDO DO SEXO E OUTROS TEXTOS)