1.4.07

O SUBCOBSCINETE REVELADO

Com a assinatura característica de David Cronenberg, "Mistérios e Paixões" é um dos mais desconcertantes filmes dos últimos anos. Sem paralelos entre o livro e as imagens, o filme resulta numa obra ficcional e bizarra. Transportado para década de 90, "Mistérios e Paixões", dirigido por David Cronenberg e produzido por Jeremy Thomas, é baseado no romance perturbante de William S. Burroughs, "Almoço Nu", cuja adaptação cinematográfica dá uma continuidade a obra e a vida do autor. Este alheamento da realidade, transporta-nos para um mundo ficcional com uma estrutura semelhante ao mundo real, mas que no seu ego se mostra perverso. Numa busca das nossas emoções e prazeres mais caros, explora as capacidades aparentemente ilimitadas de abstracão do ser humano, criando um universo muito próximo, onde é difícil distinguir a realidade da alucinação.
No livro de William Burroughs, "Almoço Nu" - "um momento congelado em que todos vêem o que está na ponta do garfo" -, publicado em 1959, não há estória, enredo ou continuidade, nem a intenção de entreter alguém. O autor faz uma crítica à sociedade, por meio de um retrato da Interzone, uma cidade ficcional na qual os homens se transformam em insetos durante o sexo, o destino para onde Burroughs escapou depois de na vida real, acidentalmente, ter morto a sua mulher. E ele mesmo cita que, em seu livro, a palavra é dividida em unidades que formaram uma só peça e assim deve ser tomada, mas as peças podem ser consideradas em qualquer ordem, ligadas para trás e para frente, para dentro e para fora, antes e depois, como um interessante arranjo sexual. A maior preocupação que o autor tinha com o leitor era a visão do vício como modelo de controle e como uma fuga para as repressões impostas pela sociedade, relacionadas às potencialidades biológicas da humanidade.
Burroughs foi um dos grandes nomes da prosa beatnik, primeiro movimento de contra-cultura com uma importante repercussão histórica e cultural a acontecer nos Estados Unidos. Eram jovens que se conheceram dentro e fora da universidade, interessados em escritos não ortodoxos como Rimbaud, Blake, Melville, Withman, Kafka, Nietzsche, dadaístas e surrealistas, que simplesmente pareciam não se ajustarem nas imposições assépticas dos EUA. Inquietos e marginais eram expressamente contra a Indústria Cultural e apostavam em novas alternativas de vida. Buscavam lutar pelo próprio direito, não por um mundo melhor, nem por uma revolução, mas por uma opinião individual.
Burroughs nasceu em 1917 e viveu até o ano de 1997. Herdeiro rico, formado em medicina, foi viciado em heroína por 10 anos, e o relato desse tempo está em Junky, seu primeiro livro. “Almoço Nu” foi outro livro importante de sua obra, titulado por Jack Kerouac, no qual o autor “é capaz de olhar o inferno e contar para todos o que viu”. Com uma grande importância na literatura, a obra de Burroughs influenciou muitas outras expressões artísticas com as suas criações espontâneas, surreais e libertas de qualquer padrão.
David Cronenberg não se limita a folhear "Almoço Nu" e usar para a construção da narrativa de seu filme a própria vida de William Burroughs. "Mistérios e Paixões" enquadra-se numa trilogia específica, que embora não seja indiferente ao tema do corpo, explora abertamente a questão da capacidade da mente para controlar o nosso comportamento e o nosso destino. O poder imaginativo da mente afetada pela droga está presente em quase todas as cenas do filme. Uma viagem pela mente, onde o corpo se assume como protagonista, resulta no exagero dos devaneios do estado de psicose que o dedetizador William Lee (interpretado por Peter Weller) mergulha, chegando ao ponto de matar sua mulher (interpretada por Judy Davis), viciada em dedetê. Fato responsável pela fuga de Lee para a Interzone, uma cidade onde tudo é permitido.
A liberdade criativa do realizador, baseada num fascínio pela vida e obra de William Burroughs, resultaram num filme que ultrapassa as expectativas, ao transpor para o grande cinema a imaginação do universo de Burroughs, povoando as imagens da nossa experiência com fragmentos do mundo.

Um comentário:

Milton Hurpia da Rocha disse...

Um comentáriozinho, dois comentáriozinhos, três comentáriozinhos, e a fofoca vira burburinho.
E o burburinho vira troça, e a foca vira cambalhota!!!