23.5.07

Bem alto

É muito difícil ser eu mesmo. Sinto uma dificuldade imensa em expressar verdadeiramente meus sentimentos. Já tenho uma certa idade e choro, choro com muita freqüência. Mas ninguém jamais viu isso. Engraçado. Não tenho certeza de quem realmente sou. Não quero falar muito sobre mim. Senão amanha posso não concordar. Eu comprei minha casa há um ano, foi um sonho meio poético. Moro na rua xv de novembro, esquina com a rua joão negrão. Perto do correio central. Engraçado. É uma casa mesmo, foi construída no terraço de um edifício de 20 andares. Dá pra ver da rua. Sou aposentado. Fui um grande profissional. Tive um filho com 19 anos, mas eu era muito novo para assumir. Acabei sozinho. Já admirei muitas mulheres e tive algumas nos meus braços. É isso. Vim morar aqui no alto. Tenho as estrelas quase no alcance das mãos. Engraçado. Desci os 20 andares hoje pra comprar algum alimento e umas sementes, porque fiz uma horta. E eu o encontrei.
Lá de cima observo meio que constantemente as pessoas. Tem uma mulher que vende pipocas ali na praça santos andrade. Meu santo! Ela sempre esta mastigando uma pipoca. Chega às 8 da manhã. Sai às 6 da tarde. Tem os estudantes. A fila da previdência social. Os pseudo-intelectuais que disputam o ingresso do teatro e depois vão tomar um café e fumar um cigarro e, quem sabe, fofocar ou ler um jornal. Carros e carros. E rodolfo. Eu o chamo assim. Espero que ele não se importe. Você não sabe, mas eu conheço rodolfo há muito tempo. Sinto algo de especial quando o vejo lá do alto. Mas nunca nem chego perto. Prefiro só olhar.
Rodolfo. Engraçado. Gosto da rotina dele. Muito mais do que das outras rotinas que posso observar daqui. Sei de tanta coisa...
Chega de falar de mim. Imaginem o que quiserem de um velho barbudo e grisalho que quis construir sua casa no terraço de um edifício. Engraçado. Custou caro este sonho. Podem imaginar, mas nunca vão saber o que é dormir nas nuvens.
Então vou falar do rodolfo. Meu ídolo. Um cachorro imbecil que mora no cantinho da praça. Não me pergunte qual canto. Sempre muda. E eu sempre o encontro. Observo atentamente como consegue comida ali no meio daquela multidão. Quando não consegue eu levo. Engraçado. Já joguei um pedaço de carne lá de cima e ele comeu. Admiro tanto este animal que, pra mim aqui no alto, parece mesmo que ele é gente. Melhor até que gente. Não fala. Mal late. É imperceptível. Parece autoconfiante e raramente o vejo cabisbaixo. Rodolfo, rodolfo...
Uma vez o trouxe para minha casa pelas escadas. Mentira. Trouxe pelo elevador. E depois pela escada. Porque o elevador não vem até aqui. Só até o ultimo andar mesmo. Logo percebi que ele não gostava de altura. Muita pena mesmo. Gosto dele. Cachorro imundo e sem rumo. Parece que baba.
Se eu fosse um cachorro viveria atrás de uma cadela. “Sou homem”, chorei de emoção.


Juana Dobro

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