23.10.10

A Ferida

“Esta noite… esta chuva… estas reticências. Sei lá.

Quem seria capaz de abrir o peito e mostrar a ferida? De dizer o nome? De lembrar, sequer lembrar, o rosto?

Quem seria capaz de contar a história? De chamar o maior amigo, ou melhor, o inimigo, e dizer:

— Estou me sentindo assim, assim, assim…

A humanidade está necessitando, urgentemente, de afeto e milagre. Mas não sabe onde estão as mãos, nem os deuses. E, quando souber, vai achar que as mãos e os deuses são de mentira. Os olhos de todos estarão cheios de medo, os olhos das jovens raparigas, os olhos, os braços, o ventre e as pernas das jovens raparigas, receosos de pagar com os quefazeres do sexo.

Nesta noite, com esta chuva, as jovens raparigas não são importantes. Apenas uma tem importância. Mas quem seria de todo livre e descuidado, a ponto de dizer o seu nome? De pensar o seu nome? Você diria em público o nome da Amada? E suportaria ouvi-lo? Não, não; o nome dela, em sua boca ou na dos outros, é tão proibido como sua nudez (dela). Não há diferença.

E por que você não se transforma no homem banal, que se encharca de álcool, para apregoar a desdita? Seria mais fácil. Talvez alguém lhe chamasse de porco e você revidasse com um soco no rosto, um só rosto, de todo o Gênero Humano. Viria a polícia, que simplifica tudo, generalizando. E tudo se transformaria em notícia: “Preso o alcoólatra, quando injuriava e agredia a Família Brasileira, na pessoa de um sócio do Country”.

Há poucos minutos, em meu quarto, na mais completa escuridão, a carência era tanta que tive de escolher entre morrer e escrever estas coisas. Qualquer das escolhas seria desprezível. Preferi esta (escrever), uma opção igualmente piegas, igualmente pífia e sentimental, menos espalhafatosa, porém. A morte, mesmo em combate, é burlesca.

Uma pergunta, que não tem nada a ver com o corpo desta canção. Quem saberia discriminar o ódio do amor? Ninguém. Os psicologistas e analistas têm perdido um tempo enorme.

Ontem à noite, voltando para casa, senti-me espectador de mim mesmo. E confesso que, pela primeira vez, não achei a menor graça. Saíra, pela primeira vez, de óculos e o porteiro do edifício me recebeu com esta agradável pergunta:

— Que é que houve? O senhor está mais velho?

Tirei os óculos e, fitando-o, esperei as desculpas. Mas o homem continuou:

— O que é que houve? De ontem para cá, o senhor envelheceu.

Tinha pensado que, sem os óculos…

Não estou escrevendo para ninguém gostar ou, ao menos, entender. Estou escrevendo, simplesmente, e isto me supre: contrabalança, quando nada. Esta noite, esta chuva — e poderia escrever as coisas mais alegres, esta noite. Neruda, coitado, as mais tristes.

Só há uma vantagem na solidão: poder ir ao banheiro com a porta aberta. Mas isto é muito pouco, para quem não tem sequer a coragem de abrir a camisa e mostrar a ferida.

(Antonio Maria, em “Com vocês Antônio Maria”).

20.10.10

Me conceda uma valsa...

http://www.youtube.com/watch?v=3UYEZnhnVCg

18.10.10

POEma





Não fui, na infância, como os outros
e nunca vi como outros viam.
Minhas paixões eu não podia
tirar de fonte igual à deles;
e era outra a origem da tristeza,
e era outro o canto, que acordava
o coração para a alegria.

Tudo o que amei, amei sozinho.
Assim, na minha infância, na alba
da tormentosa vida, ergueu-se,
no bem, no mal, de cada abismo,
a encadear-me, o meu mistério.

Veio dos rios, veio da fonte,
da rubra escarpa da montanha,
do sol, que todo me envolvia
em outonais clarões dourados;
e dos relâmpagos vermelhos
que o céu inteiro incendiavam;
e do trovão, da tempestade,
daquela nuvem que se alteava,
só, no amplo azul do céu puríssimo,
como um demônio, ante meus olhos.




Edgar Allan Poe (Tradução de Oscar Mendes)

7.10.10

Soberania

Manoel de Barros


Naquele dia, no meio do jantar, eu contei que tentara pegar na bunda do vento — mas o rabo do vento escorregava muito e eu não consegui pegar. Eu teria sete anos. A mãe fez um sorriso carinhoso para mim e não disse nada. Meus irmãos deram gaitadas me gozando. O pai ficou preocupado e disse que eu tivera um vareio da imaginação. Mas que esses vareios acabariam com os estudos. E me mandou estudar em livros. Eu vim. E logo li alguns tomos havidos na biblioteca do Colégio. E dei de estudar pra frente. Aprendi a teoria das idéias e da razão pura. Especulei filósofos e até cheguei aos eruditos. Aos homens de grande saber. Achei que os eruditos nas suas altas abstrações se esqueciam das coisas simples da terra. Foi aí que encontrei Einstein (ele mesmo — o Alberto Einstein). Que me ensinou esta frase: A imaginação é mais importante do que o saber. Fiquei alcandorado! E fiz uma brincadeira. Botei um pouco de inocência na erudição. Deu certo. Meu olho começou a ver de novo as pobres coisas do chão mijadas de orvalho. E vi as borboletas. E meditei sobre as borboletas. Vi que elas dominam o mais leve sem precisar de ter motor nenhum no corpo. (Essa engenharia de Deus!) E vi que elas podem pousar nas flores e nas pedras sem magoar as
próprias asas. E vi que o homem não tem soberania nem pra ser um bentevi.

2.10.10

O amor e a mídia

“Uma das maiores realizações que se espera da vida é a paixão, um encontro amoroso intenso, pleno. O problema é que não temos segurança dele. Quanto mais me apaixono, maior o risco de me iludir. A paixão — do grego pathos, que designa a situação em que sou passivo (em oposição à ação) e minha razão fica inibida — não é boa juíza de caráter ou de relações. O encontro emocional intenso pode dar errado. Sua base pode ser frágil. Por isso, parece necessário cada pessoa construir o sentido de sua vida (seu ‘eixo’) sozinha, e balizar a relação com o outro por essa prévia definição pessoal. (…) A mídia fala muito em paixão e pouco em amor. O amor sempre aparece como algo menor que a paixão. O coração não dispara. Parece coisa de velho. Não assitimos a histórias de amor, só de paixão. Talvez esteja na hora de começarmos a contar histórias de amor, não só de enganos. Aprendemos a viver escutando narrativas. É hora de pensar que ‘foram felizes para sempre’ só é possível com o amor, não com o fulgor passional.”

Renato Janine Ribeiro, “A insuportável liberdade do amor”

Fragmentos sobre a vida

“- Sinto que minha vida diária não tem importância, que eu deveria estar fazendo algo diferente. Por quê?
- Quando estiver comendo, coma. Quando sair para um passeio, ande. Não diga “eu deveria estar fazendo algo diferente”. Quando estiver lendo, dê a isso a sua atenção completa, seja um romance policial, uma revista, a Bíblia, seja o que for. Atenção completa é atenção completa e, portanto, não há essa de “eu deveria estar fazendo algo diferente”. Só quando estamos desatentos é que surge o sentimento de “pelo amor de Deus, eu tenho de fazer alguma coisa melhor”. Se dá atenção completa quando está comendo, isso é ação. O importante não é o que fazemos, mas se podemos dar a isso total atenção. Por atenção, não quero dizer algo que aprendemos através de concentração na escola ou na empresa, mas observar com nosso corpo, nossos nervos, nossa visão, nossos ouvidos, nossa mente, nosso coração _inteiramente. Se fizermos isso, haverá uma mudança enorme em nossa vida. Algo exigirá toda nossa energia, vitalidade, atenção. A vida exige essa atenção a todo minuto, mas fomos tão treinados em desatenção que procuramos sempre escapar da atenção para a desatenção. Dizemos “como é que vou observar? Eu sou preguiçoso”. Seja preguiçoso, mas totalmente atento à preguiça. Seja totalmente atento à desatenção. Saiba que está totalmente desatento. E quando souber que está inteiramente atento à desatenção, estará atento.”

Trecho do livro “A Humanidade Pode Mudar?”, do pensador indiano Jiddu Krishnamurti (1895-1986).